terça-feira, 26 de outubro de 2010

Ingrata Companhia

Trago no peito um desejo agora confesso, um intento pueril e latente.
Tenho nos lábios sede de morte, e na boca um amargo de sangue.
Mas sou covarde. A tristeza essa dama que ora senta-se a mesa e ceia comigo talvez ainda não saiba, mas pretendo que deixe minha casa, e antes fosse somente isso, gostaria mesmo de vê-la moribunda, sua agonia seria valsa aos meus traiçoeiros ouvidos, que de tanto ouvir os conselhos desta sedutora companhia não quer ouvir mais nada.
Foram tantas as vezes que pus a mão à bainha e admirei o reflexo deste instinto assassino no metal cuidadosamente afiado, e me enaltecia com o feito nunca executado de ver o metal frio contrastar com o sangue quente desta bela dona que insiste em querer-me tão mal.
Não fosse a melancolia cálida daqueles olhos castanhos hoje eu poderia esboçar um breve sorriso.
Não sei dizer ao certo, dos tempos felizes tenho poucas lembranças, mas sei que a culpa foi minha, estava frio disso eu tenho certeza, mas eu deixei a porta aberta, as luzes foram se apagando e quando percebi esta estranha foi se achegando ocupando os espaços tão meus, mudando os móveis de lugar, e aos poucos se tornou uma presença constante, dada a falatórios e opiniões, mesmo no mais silencioso dos meus pensamentos.
Despedir-se desta hospede indesejada foi se tornando mais e mais difícil à medida em que ela preenchia minhas horas e falseava a existência da solidão nunca ausente.A verdade é que fui perdendo braços e pernas nestes combates diários, e no fim minha inimiga intima tinha sempre um abraço aguardado ao ente ferido, vencido, mas que se aconchegava neste abraço ignorando as perdas de então.
As chuvas dessa época me ensinaram a cultivar lírios, eu admirava cada pétala como se nunca as houvesse visto embora quase os tivesse decorado um a um.
Eu e meu jardim de lírios. Meus dias tinham lampejos de luz por tê-los comigo, as flores que a alguns presumiam a morte, traziam vida para mim, meus lírios são meus e de mais ninguém, embora ficasse feliz quando olhos curiosos os consideravam digno de admiração.
De todos os defeitos que minha convivente possuía sem dúvida a opinião sobre os lírios era a que mais me incomodava, estava sempre a sussurra que no fundo sem ela por perto meu jardim jamais teria vingado, parcamente um ou outro pequeno e mal dotado lírio teria brotado. Quanta pretensão! Aqueles lírios eram fruto do meu suor mais sagrado e por pior que fosse admitir ela realmente tinha sua parcela de contribuição, não fosse eu me sentir tão absolutamente transbordante àquela presença jamais teria intuído ir ao quintal e derramar sobre aquele pedaço de chão um pouco de todos os excessos, de fato  não sei se o solo estaria pronto a produzir qualquer coisa.
Meus lírios brotaram da minha fraqueza, da minha incapacidade de suportar, dessa perca interminável de me encontrar em algum espaço vazio no meio dessa imensidão.
Não tenho facilitado as coisas aqui nesta casa, a convivência com essa conhecida estranha tem perpassado dias difíceis, mas temos uma relação sólida, as vezes acordo no meio da noite vindo de um sono preocupado, na iminencia de que tenha ido embora, partido e então o desespero esse senhor meio descompensado e que tem sempre um sorriso irônico no rosto passa pela minha janela acena com o chapéu como se só aguardasse uma vaga na minha morada.
Tenho calafrios nestas noites e fatalmente não durmo mais, fecho as portas e janelas no afã de impedir que mais um desafortunado visitante venha sem dia nem hora para voltar.
Não quero mais hospedes. Minha morada tem estruturas fracas, cômodos pequenos, poucos e parcos mantimentos, não preciso que mais alguém venha e por mais indesejável que seja me faça acreditar que não estou só, e me obrigue a encher os ares de saudade quando este se for, por mais que eu almeje que este o faça.
Todos os meus dias eu tenho acordado e preparado calmamente um discurso sobre a necessidade vital de que minha companheira se vá, tento convencer a mim mesmo que será melhor assim, melhor para os dois e no fim do dia já não tenho mais forças para dizer mais nada, nem mesmo para ser hostil com essa mulher de má fama, que sob todos os meus protestos senta-se comigo na varanda na penumbra de todas as horas, que fertiliza o terreno dos meus pequenos e amados lírios. Não posso mandá-la embora! Não posso ver essa nuvem se dissipar e encher tudo de luz quando ela se for. Tenho medo que os lírios não sobrevivam, tenho medo de abrir os olhos tão acostumados a pequenos feixes de luminosidade e me deparar com a metade de mim que tenha sido deixada.
Temo mais ainda, a figura quasímoda, incompleta, refletida no espelho repetindo que não expurguei nada, apenas tornei-me menor.